O Apartheid Desnudado
O mundo inteiro se engana com o Brasil. Ele é
sempre imaginado como o país da morena felicidade tropical, campeão
da alegria.
As repetidas cenas de violência chocam o mundo,
mas não são suficientes para empanar esse brilho. Entretanto,
há o sentimento difuso de que o Brasil não completou sua
independência, não é um país legitimado e, portanto,
não é interlocutor válido no cenário mundial;
o Brasil teria muito a dizer ao mundo, mas não disse ainda a que
veio. Realmente, o Brasil não chegou à plenitude.
Longe disso, ele não é apenas campeão
das desigualdades mas também o último grande apartheid do
planeta! O V Centenário de História do Brasil veio mostrar
isto com bastante clareza. A situação é tão
aberrante que para sair dela nós vamos precisar - assim como, no
passado, a África do Sul - de ajuda internacional.
A reflexão em torno do V Centenário,
nos levou a concluir que quinhentos anos depois do início da conquista
e colonização, o Brasil é um país dividido,
onde os herdeiros dos colonizadores continuam a explorar os descendentes
dos "vencidos". O povo vive na miséria e é cotidianamente
discriminado e humilhado.
O simulacro de cordialidade e de democracia racial
esbarra na clareza estatística dessa exclusão e na limpidez
de nossas percepções visuais. Esse perverso sistema de exclusão
toma a forma de um sui generis apartheid sociorracial, cujas raízes
estão fincadas em 1500.
O apartheid é dissimulado: não é
de direito, mas é de fato. Sua perversão reside justamente
aí: a denúncia é dificultada pela aparente invisibilidade.
Não se pode esquecer, no entanto, que, em princípio, o fato
precede o direito.
E o fato é que negros, a maioria dos mestiços
e os índios conhecem, por experiência, a concretude desse
"muro invisível". Conhecem mas praticamente não podem falar
nele. Um pesadelo: fazem um esforço tremendo para emitir algum som
mas nenhum eco se produz. São ignorados.
O assunto é tratado como segredo de estado
- tanto à direita quanto à esquerda. A tendência é
desqualificá-lo, até mesmo com mimos e declarações
de amor aos negros - pura hipocrisia, é o que se pode chamar de
"apartheid do tapinha nas costas" O povo brasileiro está cheio
desse "amor", ele é sufocante!
O apartheid à brasileira é sui generis
em muitos outros aspectos, mas seria longo explicitá-los aqui. Com
o V Centenário essa fratura ficou exposta, a nervos descobertos.
A renovação do protocolo de convivência foi comprometida.
Habituado ao menosprezo pelo povo, o governo se traiu.
Ao pretender celebrar a lusitanidade e não
a brasilidade, ele agiu abertamente como secular representante dos colonizadores
e de seus herdeiros, colocando em jogo a própria razão de
ser do país: afinal, faz sentido um país que se toma por
um outro?
Vale lembrar que o Brasil é o único
país das Américas a pretender homenagear os colonizadores.
Em 1992 - uma data mais relevante para a humanidade do que a que agora
se avizinha -, nenhum país do lado de cá do Atlântico
permitiu que se festejasse Colombo sobre o seu território (a grande
festa aconteceu em Sevilha, na Espanha).
Aqui, nós somos confrontados a uma festa
portuguesa dentro de casa! É como se os assassinos resolvessem fazer
uma festa na casa dos parentes do morto - um insulto! (Artes do General
Menosprezo que sinalizam para o fim de um reino ?)
A ruptura não se fez tardar. Apesar da aparente
placidez o povo brasileiro sempre esteve à espreita. O ataque se
portou sobre a raiz e emblema do lusocentrismo.
Constata-se que mesmo do ponto de vista europeu
não houve o descobrimento português: Colombo precedeu os portugueses
em 1492 e em 1498, quando localizou o continente americano; qualquer outra
"descoberta" ao longo da costa desse continente está evidentemente
subordinada à descoberta espanhola (note-se que o Brasil foi, por
assim dizer, dividido - no Tratado de Tordesilhas - antes de ser 'achado').
Sem sustentação empírica, o
"descobrimento" ficou nú: é um conceito racista, pois coloca
os índios no mesmo plano que os objetos, a fauna, a flora e os acidentes
geográficos. Ou seja, coisifica e desumaniza os índios e,
por extensão, os africanos e seus descendentes.
A enormidade do "equívoco" espelha o abismo
racial do país. Numa frase, prenhe de perplexidade, o Centro de
Cultura Negra do Maranhão (norte do Brasil, em 13/05/99) resume
500 anos de desgoverno: "A História do Brasil começa com
um descobrimento que não houve", sentencia.
Uma questão se coloca: como dar rumo a um
país que traz embutido no seu evento fundador a exclusão
da maioria da população?
A farsa do descobrimento beneficia as elites na
medida em que por uma série de operações lógicas
subliminares todos são levados a presumir que os brancos são
superiores por que descendentes de "heróis civilizadores", tudo
só fazendo sentido a partir deles.
Os outros brasileiros - a maioria - tem sua auto-estima
metodicamente enxovalhada, deixando os beneficiários da exclusão
com as mãos livres para agir, inclusive em matéria econômica.
(Entende-se porque as elites insitem em sacralizar o "descobrimento", entronizá-lo
como mito fundador.)
O Brasil não terá solução
enquanto esse regime colonial de espírito não for deposto.
Entretanto, a coisa é muito mais grave do que se pensa: inexiste
um real engajamento capaz de produzir a mudança.
Aqueles que em princípio deveriam promovê-la
- as Esquerdas - fingem desconhecer essa dolorosa realidade: consideram
a centralidade da economia e da luta de classes sem atentar para o fato
de que a exclusão tem também (e sobretudo) base étnica.
Curiosamente, deixa-se de lado uma realidade inarredável:
os "vencidos" de ontem são os excluídos de hoje, e essa maioria,
minorizada, não tem direito a voz.
Seriam nossas esquerdas eurocentristas? Parece que
sim. É interessante notar que o principal projeto colonialista para
o V Centenário nos foi apresentado por um ex-ideólogo do
Partido dos Trabalhadores, que se tornou ministro de FHC. Ora, ninguém
muda de mentalidade da noite para o dia
A fundura e a qualidade da abissal desigualdade
entre os brasileiros nos é instantaneamente comunicada. No V Centenário,
os operadores lógico-simbólicos do sistema de exclusão
foram desvendados. Agora a História é Outra.
O Movimento de Resistência Indígena,
Negra e Popular pretende ser o porta-voz da mudança, todavia tudo
é ainda muito precário - dentro do quadro que acabamos de
traçar, os apoios são mais nominais que efetivos.
Frente ao poder avassalador do governo e da mídia,
que ameaçou, por exemplo, fechar o sítio histórico
de Porto Seguro (sul da Bahia) para fazer uma festa triunfalista com seletos
convidados, nenhuma personalidade conhecida nacionalmente se pronunciou.
Nós vivemos realmente na Costa da Perplexidade,
nossa cruenta realidade sempre nos desarmou. Entretanto, nós sentimos
que cada vez mais chega a hora de o Brasil tomar posse de si mesmo, sair
da perplexidade para entrar na História.
Por Celene Fonseca, antropóloga
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